Património
Mas com o tempo a cidade cresce sobre si mesma; adquire consciência e memória de si própria. Na sua construção permanecem os motivos originários, mas ao mesmo tempo a cidade esclarece e motiva os do seu próprio desenvolvimento
Aldo Rossi [i]
Os espaços retratados ao longo deste livro – as salas de cinema – são o testemunho de um período determinado na nossa história, assim como de uma geração de arquitectos locais e não só, que contribuíram para a construção da imagem das nossas cidades. Se por um lado, o olhar mais técnico repara os pormenores e materiais, e a espectacularidade da arquitectura, por outro, permite também imaginar a vida que ali foi vivida, sonhada. Em alguns casos, poder-se-ia falar de um ideal de sociedade ou estilo de vida que hoje já não serve – por exemplo nos casos das cine-esplanadas: construções singulares, cujo desenho e construção partem de uma cultura, geografia e climas locais, e que não se encontram em nenhuma outra parte do mundo. Outras, mais modestas, reflectem a interpretação de ideais da arquitectura internacional no contexto local.
Mais do que o esplendor da arquitectura, falamos de edifícios públicos inseridos em contextos onde podem adquirir uma função mais social – trazer outras culturas para os seus usuários, até mesmo à memória do que foram espaços. O cinema enquanto arte trás em si a simbologia de uma sociedade que tem urgência em ser moderna. Paradoxalmente, deparamo-nos actualmente com uma corrida em direcção a esta modernidade, deixando para trás um legado importante.
Restaurá-los não significa só a recuperação das formas arquitectónicas, mas igualmente funcional [ii]: é importante o estabelecimento de uma dialéctica entre o futuro e o passado, entre os novos usuários, (re) criando vivências e memórias e estabelecendo laços entre as comunidades e os edifícios desenhados para as servirem.
Num contexto cada vez mais global, as identidades torna-se mais distintas e singulares. Com os avanços tecnológicos, o encurtamento das distâncias entre os países e culturas, é patente a busca cada vez mais por referências que nos ajudem a perceber os caminhos percorridos até chegarmos onde estamos e traçar o futuro. A transitoriedade da sociedade actual revela a nossa fragilidade e efemeridade enquanto sujeitos históricos e traz a luz a busca por elementos que transitam a sensação de continuidade e perpetuação – os processos de preservação abrangem não só a questão física e formal mas também e acima de tudo a preservação de uma identidade, da acção e da memória de diferentes grupos sociais, tornando-se um elemento primordial para a promoção do bem-estar social, da cidadania e de crescimento sustentado.
Em Angola a legislação que estabelece bases políticas sobre a conservação do património está em vigor desde Outubro de 2005 [iii], tendo sido criada para dotar o Estado de instrumentos e bases jurídicas para a classificação e protecção dos bens integrantes do Património Cultural.
O decreto abrange não só obras consideradas importantes no passado (igrejas e fortalezas), mas define como património todos os bens de interesse cultural relevante, tais como as línguas nacionais, testemunhos históricos, arqueológicos, arquitectónicos, artísticos, etnográficos, documentos fotográficos, discográficos, entre outros, que reflictam a singularidade, a memória local, autenticidade, e que pela sua natureza, mereçam a protecção do Estado.
O que torna as nossas cidades singulares é precisamente este património que traduz os hábitos das suas gentes, mas também os espaços e edifícios construídos ao longo dos séculos, o acumulo de referências de outras épocas, de outras vivências. É também aquilo que dá unidade as comunidades – unidade esta que é sempre fruto de diferenças (regionais, étnicas, sociais, ideológicas, religiosas, etc), mas que deve ser assumida na sua pluralidade. Conhecer o nosso passado e preservar a memória e a cultura deve ser requisito para as acções no presente. É sabendo sobre como procederam aqueles que nos antecederam, nas mais diferentes situações, que agimos criticamente, espelhando-nos ou não em suas acções. Reflectir sobre a memória é valorizar o passado e seus legados, é ser sujeito da construção da história, e isso é um pressuposto básico para o exercício da cidadania.
Reflectir sobre a importância da conservação do património histórico, significa pensar sobre conceitos relacionados com o desenvolvimento da Modernidade. Embora com raízes mais antigas, é no século18 que se começam a definir metodologias para a conservação e restauração de edifícios históricos, originando as primeiras legislações sobre o tema. Em 1965 é criado o ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) para regulamentar esta actividade.
A elaboração destes documentos foi importante, entre outros aspectos, na definição técnica do termo Património Histórico – bens tangíveis e intangíveis, naturais ou edificados que possuam valor para qualquer sociedade, e por este motivo sejam dignos de ser preservados. O seu significado simbólico abrange todos os produtos do “sentir e do fazer humanos”, ou seja todos os sustentáculos de uma cultura e identidade próprias e que nos diferenciam uns dos outros.
Ainda assim, é peremptório afirmar que a implementação das políticas e dos procedimentos de conservação carece de afinação, de educação e sensibilização, a vários níveis. Numa sociedade jovem, saída de uma guerra onde muitas estruturas foram destruídas ou semidestruídas, a reflexão sobre o património, sobre o que deverá ser restaurado e demolido deve fazer parte do processo de construção da identidade nacional.
i. Aldo Rossi, A Arquitectura da Cidade, Edições Cosmos, 2002
ii. Aqui refiro-me não só a restaura-los a sua antiga função, mas também a restauração das estruturas com novos usos, que não danifiquem a memória dos espaços: museus, bibliotecas, casas-museus, escolas, etc.
iii. Decreto Executivo Nº 94/05 – Lei Nº 14/05 de 7 De Outubro

ANGOLA CINEMAS, Walter Fernandes & Miguel Hurst, 2015
Publicado em ANGOLA CINEMAS, Walter Fernandes & Miguel Hurst, 2015